Pesquisadora portuguesa critica falta de transparência e exploração do trabalho no Sistema da Dívida

Compartilhe:

O processo de regressão social pela qual passa a maioria dos países é hoje uma realidade que arruína as nações e desvaloriza a força de trabalho. Isso, em função do pagamento de uma dívida pública nunca auditada. É o que acredita a investigadora e professora da Universidade Nova Lisboa e do Instituto Internacional de História Social, Raquel Varela. Para ela, as informações relativas à destinação dos recursos pagos pelo cidadão devem ser públicas e transparentes e de fácil entendimento “Em Portugal, nós não tivemos acesso à estrutura da dívida, pois ela não é pública. A maioria dos contratos de endividamento do estado sequer está traduzido para o português. É um novelo jurídico completamente enrolado”, critica.

Segundo a pesquisadora, a dívida portuguesa nunca foi auditada e o acesso aos dados relativos à arrecadação e gastos públicos, não estão liberados. “Diante dessa realidade, tivemos que mudar nossa forma de trabalho. Avaliamos a estrutura de impostos e contribuições sociais pagas pelo fator trabalho. Tomamos como certa a divisão de rendimentos proposta pelo Estado e calculamos tudo que os trabalhadores entregam e aquilo que eles recebem.

Chegamos à conclusão de que esse valor é superavitário”, apontou.
A ausência de contrapartida do Estado na forma de serviços e assistência social aos cidadãos é uma das características do Sistema da Dívida. Esse escoadouro de recursos público que recicla papéis podres em papéis com valorização, só aumenta ainda mais a dívida das nações e a influência de organismos internacionais na autonomia dos países.

“Nós acreditamos que só o trabalho produz valor, não há rendimento do trabalho e rendimento do capital. O rendimento do capital é o trabalho não pago”, pontuou.

Cidadãos e a dívida pública

Com um amplo currículo ligado aos estudos de história, política e conflitos sociais, Varela lembrou que na idade média, a dívida era considerada usura e hoje é um compromisso assumido, ligado a honra e caráter do individuo e que dessa forma, passa pelo entendimento de que deve ser paga. “Não temos problemas em pagar dívidas, mas precisamos saber se são legítimas, em nome de quem foram contraídas, a quem e a qual taxas associadas. Duvido que a finalidade não esteja ligada ao Sistema da Dívida”, reforça.

Ela enfatiza que o Estado não pode obrigar os cidadãos a pagarem uma conta que sequer tem acesso aos contratos que os vinculam. “Continuamos a ser chamados para pagarmos uma conta sem nunca termos visto a fatura”.

Crise de valores

Dentro da concepção do Estado mínimo, empresas foram privatizadas, empregos terceirizados, sistema financeiro desregulamentado e força de trabalho explorada. Diante desse quadro, a investigadora Raquel Varela aponta uma falência e caos desse sistema, cuja única salvação estaria ligada ao trabalho, na forma de salário social, aumento de impostos sobre o trabalho, no consumo, na forma de pensões e reformas. “O problema não é a intervenção do Estado e sim a favor de quem ele intervém”, destacou.

Ela afirmou ainda que as crises de hoje não são ligadas à escassez e sim à superprodução do capital, para a salvação dos bancos e taxa média de lucros. “Prefere-se destruir capital, encerrar fábricas, despedir pessoas, desperdiçar alimentos a ver o preço de esses desvalorizarem”, completou.

Conscientização

O Sistema da Dívida é hoje um sistema de remuneração de capitais falidos, cujos contratos são, além de obscuros, inacessíveis. A única forma de mudança dessa realidade, segundo a pesquisadora, seria uma mobilização social consciente dos povos, cobrando seus direitos e a mudança desse modo de Estado. “Hoje, 70 pessoas tem 50% das riquezas, e isso todo ano aumenta. Precisamos mudar essa realidade, que privilegia grandes empresas e banqueiros e penaliza o trabalhador”, criticou.

Parceria Brasil-Portugal

Durante a palestra, foi anunciada parceria internacional com a participação da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil, coordenada por Maria Lucia Fattorelli, setor da UnB coordenado pela Professora Ivanete Boschetti e o observatório para as condições de vida, dirigido pela pesquisadora da Universidade Nova Lisboa por Raquel Varela. Oportunamente será formalizado um protocolo e divulgaremos, porém os trabalhos já estão começando.

“Essa parceria é histórica, e convocamos todas as entidades e colaboradores da Auditoria Cidadã da Dívida a participar. Queremos formar um grupo de estudos com a participação de pessoas das diversas áreas, para que possamos ter um olhar distindo sobre os diversos assuntos”, destacou Fattorelli.

Maria Lucia lembrou que o início da cooperação entre a Auditoria Cidadã e o grupo de estudos português, ocorreu durante a auditoria da dívida grega. “Descobrimos que a principal credora da Grécia era uma empresa, sociedade anônima, criada em Luxemburgo por 17 países europeus credores. Essa mesma organização também havia emprestado para Portugal e Irlanda.

Fattorelli acrescentou que essa empresa, mesmo não sendo uma financeira, compra, emite papéis e faz empréstimos. De sigla EFSF, a companhia recicla papéis podres dos bancos por papéis com garantias dos países. “Descobrimos que não havia sido feito empréstimos às nações endividadas, era um esquema em que o país registra dívida, mas não recebe dinheiro efetivo, e sim, papéis com garantias de outros países”, avaliou. “Foi nesse momento que entrei em contato com a Raquel”, lembrou.