Auditoria da Dívida Pública

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Mario Martins Viana Junior*

A questão hídrica da região Nordeste do Brasil, juntamente com a problemática do acesso e uso da terra, sempre foi um temática bastante delicada e complexa. Tratada sob diferentes matizes, ao longo de mais de um século, sobrepôs-se a ideia das dificuldades naturais que ajudou a construir uma imagem de uma região assolada por estiagens e por todas as suas consequências semelhantemente naturalizadas. Assim, desde a primeira metade do século XX, aventou-se a “solução hidráulica” pata tentar resolver os problemas das diversas e incontáveis secas. É esta já uma análise amplamente conhecida e debatida.

A problemática que interponho neste breve texto diz respeito às possibilidades de ampliação e ligação da dívida pública, da União e principalmente dos Estados do Nordeste, com a famigerada “indústria da seca”, isto é, o ganho material e simbólico de autoridades e políticos com os recursos destinados a obras no semiárido brasileiro concatenado com a possibilidade real de desvio de recursos oriundos de empréstimos internos e externos sob a justificativa de resolução do problema da manutenção e do acesso à água.

É isso, por exemplo, que pode ser suscitado a partir da Tabela 27 do livro Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados (p. 197). Na lógica de estrangulamento dos Estados por dívidas contraídas junto à União, a opção de tomar empréstimos do Banco Mundial já é um fato consolidado e replicado há mais de uma geração no Ceará. E com isso, a provável alavancada financeira vem geminada a perdas de autonomia na elaboração e gestão de políticas públicas que deveriam atender aos interesses da população. Ao invés disso busca-se, entretanto, garantir as diretrizes dadas pela instituição financiadora externa.

Desta maneira, o informe da Tabela 27 sobre os US$ 136 milhões destinados à “Gestão de Recursos Hídricos” no Estado do Ceará em 2010 podem constituir apenas um breve indício de possíveis irregularidades na administração desses valores que merecem ser devidamente analisados. Todos os valores que foram tomados de empréstimo pelo Governo do Estado do Ceará sob a alegação de administração dos recursos hídricos foram de fatos destinados para este fim?

Em matéria no portal de notícias do UOL, no dia 17/04/2015, os repórteres Ciro Barros e Giulia Afiune expuseram com bastante clareza que desde a década de 1980 o Banco Mundial vem atuando no Ceará. Em estreita relação alavancada pelo governo de Tasso Jereissati do PSDB, a partir de 1987, o Banco foi responsável por um conjunto de empréstimos que, no discurso, objetivavam resolver os problemas gerados pelas estiagens através de “ambiciosos programas hídricos”, mas que na prática acabaram por garantir uma densa infraestrutura para atração de indústrias.
Assim, a construção de açudes, adutoras, reservatórios, entre muitas outras intervenções ajudaram a ampliar, senão criar, um cenário no Ceará extremamente perverso. Seguindo a cartilha neoliberal, programas como o Prourb (Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos) e o PROGERIRH (Projeto de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Estado do Ceará) foram executados com apoio direto de empréstimos concedidos pelo Banco Mundial ampliando a dívida do Estado.

Enquanto o Prourb foi materializado por um empréstimo de US$ 140 mi em 1993, o PROGERIH parece ter significado um processo mais amplo e complexo. Em notícia de 11/04/2013, o site do Governo do Estado do CE replicou o destaque dado pelo Banco Mundial à forma de gestão dos recursos hídricos. De acordo com a notícia, entre os anos de 2000 a 2011, o Banco teria garantido um financiamento total de US$ 730 mi através de contratos e aditivos. Para o Governo e Banco Mundial teriam sido essas intervenções as responsáveis pela segurança hídrica da Região Metropolitana da capital Fortaleza.

Ocorre, entretanto, que existe uma diversidade de sujeitos e ações que alertam sobre a continuidade e perpetuação dos problemas relacionados às estiagens mesmo com a chegada desses recursos. Aqui destacamos apenas que a infraestrutura financiada pelo Banco Mundial que cortou o Ceará de sul a norte através de canais e diques não visou o abastecimento de água das populações sertanejas. O foco da política de modernização beneficiou diretamente a população urbana fortalezense, o agronegócio cearense e o complexo portuário do Pécem (CE). Criou situações em que o pequeno agricultor vê a água passar defronte à sua porta, mas não pode acessá-la. E ampliou a dívida a ser paga por todos os cearenses para o benefício de segmentos específicos da população.

Assim, o aparelhamento do Estado para a execução de políticas de cunho neoliberal com base em empréstimos e diretrizes tomadas do Banco Mundial, em um contexto de uso político e econômico da seca, constitui uma observação que carece de uma investigação aprofundada. Em minha avaliação, faz-se necessário uma auditoria dos montantes emprestados sob a rubrica da gestão hídrica. O caminho é o de uma análise detalhada dos contratos e aditivos, bem como das notícias, do acompanhamento e avaliação das obras, entre outras ações coletivas, como audiências públicas.

Esta análise pormenorizada poderá revelar se, ao lado dos empréstimos que garantiram a concentração da riqueza no Estado e o beneficiamento do setor empresarial, se houve fraude no uso de recursos e, portanto, se há ilegalidades na formação da dívida pública do Estado do Ceará. Ademais, os sujeitos envolvidos, as taxas de juros aplicadas, os objetivos, entre outros aspectos podem desvelar outras facetas do sistema da dívida que é recoberto de peculiaridades conforme os diferentes contextos históricos.

* Trabalho de Conclusão do Curso de Ensino à Distância Dívida Pública Brasileira e suas consequências para os diversos segmentos sociais – Auditoria Cidadã da Dívida: Por quê? Para quê? Como? 

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1 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/04/17/desde-os-anos-1980-o-banco-mundial-atua-no-ceara.htm

2 Ver: http://www.ceara.gov.br/sala-de-imprensa/noticias/7917-banco-mundial-destaca-projeto-de-gerenciamento-integrado-de-recursos-hidricos-do-ceara
3 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=SoCDDaMv4EU